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Transformações de grande monte, sem debate com a sociedade, serão feitas por leis complementares

Por Eduardo Fagnani

* Artigo publicado originalmente pelo Le Monde Diplomatique Brasil Abril 2019. Fagnani integra a mesa “Reforma da Previdência: o fim da aposentadoria?”

Ajustar periodicamente o sistema previdenciário é usual em nações desenvolvidas. Mas são ajustes que não destroem os respectivos regimes de Bem-estar Social. O requisito para se debater qualquer reforma previdenciária no Brasil é que o governo apresente diagnóstico técnico qualificado dos reais problemas que precisam corrigidos. Esse diagnóstico não existe porque, de fato, não se quer fazer nenhum ajuste. O real propósito da “reforma” da Previdência é soterrar o pacto social de 1988. Ela é peça do projeto ultraliberal que se pretende implantar em marcha forçada. Os espertalhões que a formularam ocultam seu projeto real: forçar mudança estrutural na Constituição, sem nada debater com a sociedade.

Nesse cenário, prevalece a superficialidade da ideologia, em detrimento do rigor técnico e do debate qualificado. O artifício para impor as mudanças estruturais pretendidas é o terrorismo demográfico, financeiro e econômico. Para os financistas do mercado e do governo os destinos da Nação dependeriam exclusivamente da reforma da Previdência. A desonestidade intelectual irresponsável conduz à profecia de que sem essa específica reforma o Brasil “vai quebrar”.

O vento que antecede a tempestade

O ardil da “reforma” é retirar da Constituição todas as regras do Regime Próprio de Previdência do Servidor (RPPS) e do Regime Geral da Previdência Social (RGPS), e introduzir na Constituição o regime de capitalização individual. Portanto, a verdadeira “reforma” não é essa que hoje se discute que, apenas, introduz meras diretrizes transitórias, até que a verdadeira reforma seja feita por meio de dezenas de leis complementares de iniciativa do Poder Executivo. Essas mudanças são mais fáceis de serem aprovadas: enquanto a Emenda Constitucional exige o apoio de 308 deputados e 49 senadores, em duas votações em cada Casa, a legislação complementar demanda 257 votos de deputados, em duas votações, e 41 de senadores, em uma votação. É na tramitação dessas leis que se pretende acabar com o Estado Social de 1988 e, posteriormente, a continuidade desse processo poderá ser feita por atos normativos do Executivo e mesmo por Medidas Provisórias.

Assim se vê que a “Nova Previdência” é o vento que antecede a tempestade. Sob o “rolo compressor” do Congresso, o que é ruim pode ficar muito pior. Rechaçar essa trama é opção inevitável dos parlamentares, dos movimentos sociais e dos setores da sociedade comprometidos com o propósito de evitar mais um retrocesso de grande monta no incipiente processo civilizatório brasileiro.

Princípios elementares da socialdemocracia são inaceitáveis

Os “capitalistas” brasileiros, antissociais e antidemocráticos, não aceitaram, sequer, a introdução no país de alguns princípios basilares da socialdemocracia. Os constituintes se inspiraram nos êxitos dessa experiência internacional no período 1945-1975, quando políticas econômicas visando ao pleno emprego e instituições do Estado de Bem-estar Social passaram a ser aceitas como instrumentos para lidar com disfunções decorrentes da economia de mercado. Os direitos sociais universais, parte da cidadania plena, passaram a ser regidos pelo princípio da solidariedade social (Seguridade) em detrimento da capacidade contributiva individual (Seguro). Houve combinação virtuosa entre a tributação progressiva e os regimes de Bem-estar: a transferência da renda por essa via tornou-se requisito para o bom funcionamento do Welfare State.

É neste contexto que se percebe o período iniciado pela Constituição Federal de 1988 como um ciclo inédito de restauração da democracia e de avanços formais na construção da cidadania social. A Seguridade é o principal mecanismo brasileiro de proteção social. Além dos mais de 40 milhões de benefícios diretos (Previdência Urbana e Rural, Assistência Social e Seguro-Desemprego) transferidos para as famílias (a maior parte equivalente ao piso do Salário Mínimo), a Seguridade contempla a oferta de serviços universais proporcionados pelo Sistema Único de Saúde, pelo Sistema Único de Assistência Social e pelo Sistema Único de Segurança Alimentar e Nutricional.

A Previdência Social (urbana e rural) e o Benefício de Prestação Continuada (BPC) protegem e provem renda próxima do piso do Salário Mínimo para 82% dos idosos brasileiros, fomenta a agricultura familiar, combate o êxodo rural e regional e promove a economia local. Segundo o IPEA, em 2014, apenas 8,8% das pessoas com 65 anos ou mais viviam com renda menor ou igual a ½ salário mínimo, o que demonstra que a pobreza entre idosos é hoje praticamente residual no país. Caso não houvesse a Previdência e o BPC, o percentual de idosos pobres aos 75 anos superaria 65% do total. Estudo sobre a incidência da política fiscal na distribuição da renda realizados pela CEPAL (2015) [1] revela que, no Brasil, o coeficiente de Gini cai 16,4 pontos percentuais por conta do gasto com educação, seguido pelas aposentadorias e pensões públicas e pelo gasto com saúde.

Destruição do Estado Social

No plano mais geral, o projeto liberalizante tem por propósito fazer a transição da proteção social em duas direções: da Seguridade para o assistencialismo; e da Seguridade para o Seguro Social. São transformações estruturais de grande monta, que precisam ser debatidas pela sociedade.

  1. Da Seguridade Social para o Assistencialismo

A “reforma” tende a excluir uma massa considerável de trabalhadores, porque cria regras severas que desconsideram a realidade do mercado de trabalho. Cerca de 50 milhões de trabalhadores adultos que compõem a População em Idade Ativa (PIA) não trabalham. Mais de 105 milhões de brasileiros fazem parte da População Economicamente Ativa (PEA). Entretanto, quase 13 milhões estão desempregados; outros 92 milhões estão ocupados, mas cerca de 35 milhões trabalham sem carteira ou têm algum vínculo precário. Portanto, aproximadamente, 100  milhões de trabalhadores, já não contribuem para a Previdência, terão dificuldades para cumprir as novas regras e não contarão com essa proteção na velhice – quadro que tende a se agravar com o avanço da reforma trabalhista.

Nesse cenário, poucos brasileiros comprovarão 40 anos de contribuição para ter direito à aposentadoria integral. A aposentadoria parcial tende a ser inacessível para mais de 35% dos brasileiros que têm dificuldades de comprovar 20 anos de contribuição. Observe-se que, em 2015, em função da alta rotatividade do emprego, de um período de 12 meses, só 9 meses eram realmente trabalhados, em média. Assim, para completar 20 anos de contribuição eram necessários quase 27 anos de trabalho ininterruptos com carteira assinada. Com a reforma trabalhista, o período contributivo tende a encurtar, dificultando ainda mais o acúmulo de tempo de contribuição.

As regras de transição da Aposentadoria por Tempo de Contribuição são curtas e severas. Em uma das opções, em 2028, os homens passam dos atuais 96 para 105 pontos (65 anos de idade mais 40 anos de contribuição, por exemplo), um acréscimo de 9 pontos em 10 anos; e as mulheres passam dos atuais 86 para 100 pontos, um acréscimo de 14 pontos em 14 anos.

Entretanto, nessa “corrida de obstáculos”, o “gatilho” demográfico coloca desafio adicional: a idade mínima poderá ser 67/64 em 2033, porque o texto prevê esse aumento sempre que se eleve a expectativa de sobrevida aos 65 anos.

Na Previdência rural, a idade mínima da mulher passa de 55 para 60 anos e impõe-se um tempo de contribuição monetária de 20 anos, desconhecendo-se a realidade de que 70% das mulheres do meio rural começam a trabalhar com até 14 anos de idade.

A aposentadoria por invalidez será de primeira classe (acidente no trabalho) e de segunda classe (acidente fora do trabalho), cujos valores de benefício são distintos (respectivamente 100% e 60% da média de todas as contribuições). Também se cria a pensão por morte de primeira e de segunda classe (que pode ser inferior ao salário mínimo) e restringe-se o acúmulo de mais de uma aposentadoria e pensão.

A “reforma” cria mais dificuldades para a aposentadoria das pessoas com deficiência que, “previamente” serão submetidos à “avaliação biopsicossocial”. Após essa avaliação, os benefícios serão concedidos desde que o segurado comprove: 35 anos de contribuição (“deficiência leve”); 25 anos de contribuição (“moderada”); e 20 anos de contribuição (“grave”).

O aceso ao Abono Salarial será restringido apenas para quem recebe Salário Mínimo, excluindo mais de 20 milhões de trabalhadores que recebem entre 1 e 2 Salários Mínimos.

No futuro os valores dos benefícios poderão ser reajustados abaixo da inflação. A Constituição assegura “o reajustamento dos benefícios para preservar-lhes, em caráter permanente, o valor real”. Mas, o novo texto exclui o termo “valor real”.

Muro de proteção fiscal

Com as novas regras, poucos brasileiros conseguirão ter proteção previdenciária e pressionarão, em massa, a proteção assistencial, que não exige contribuição. Em decorrência, levanta-se um muro de contenção fiscal, rebaixando o valor do Benefício de Prestação Continuada (BPC) para R$ 400,00. Como se sabe, esse benefício é dirigido aos idosos e portadores de deficiências socialmente mais vulneráveis. Atualmente o BPC beneficia mais de 5 milhões pessoas, garantindo renda mensal de cidadania, no valor de um salário mínimo, aos idosos (65 anos ou mais) e pessoas com deficiência com renda familiar per capita inferior a ¼ de salário mínimo. Caminharemos assim da Seguridade para o assistencialismo, pela via da reforma realizada por legislação complementar.

  1. Da Seguridade Social para o Seguro Social

A Seguridade se diferencia do Seguro  (contrato individual selado com o prestador de serviços). No caso da Previdência, a insegurança é máxima, pois esse contrato tem vigência por mais de 30 anos. No Brasil, esses riscos são extremos em função da desigualdade social, da heterogeneidade regional e da realidade do mercado de trabalho.

A “reforma” determina a criação de “sistema obrigatório de capitalização individual” para o RPPS (União, Estados e Municípios) e para o RGPS, onde se pretende criar a “carteira verde-amarela”, portadora de escassos direitos trabalhistas. O jovem que começa a trabalhar poderá “optar” pela carteira e aderir ao regime de capitalização. Um ponto obscuro é o aceno para a possibilidade da criação de um “fundo solidário”, organizado e financiado para a “garantia de piso básico, não inferior ao salário-mínimo para benefícios”. Portanto, o próprio governo antevê que sequer o piso básico será garantido e não esclarece quem vai financiar o tal fundo.

A “reforma” desconsidera o fracasso deste modelo evidenciado pelo caso chileno e pela sua  reversão em dezenas de países. [2] O debate sobre este tema não pode avançar sem que, antes, o governo apresente, de forma criteriosa, a estimativa do chamado “custo da transição” da Seguridade Social para o Seguro Social, bem como os parâmetros utilizados para esse cálculo. Não podemos deixar repetir aqui, o que ocorreu com o Chile:

“Na prática, os custos de transição de um modelo de Previdência para o outro são altíssimos. Os custos de transição começaram a ser pagos em 1981, e ainda estamos pagando. São 37 anos e ainda devemos, sobretudo, as pensões de pessoas que se aposentaram no sistema antigo. Atualmente, o governo chileno ainda subsidia o sistema previdenciário do Chile com U$9 bilhões de dólares anuais”.  [3]

Reforma justa?

O governo estima que a “reforma” geraria economia de R$ 1,165 trilhão em dez anos [4]. Seu caráter injusto também se reflete no fato de que, desse montante, R$ 715 bilhões serão “economizados” por cortes nos direitos dos trabalhadores rurais e urbanos inscritos no RGPS; e outros R$ 182 bilhões por cortes no BPC e no Abono Salarial. Portanto, 75,6% da suposta economia decorrem da subtração de direitos dos beneficiários desses programas sociais.

Observe-se que, em 2016, no RGPS, mais e 20 milhões de benefícios urbanos, dos quais 54% tinham valor igual ou menor do que Salário Mínimo, e 86% igual ou inferior a três salários mínimos; no segmento rural, foram concedidos mais de 10 milhões de benefícios, 98,6% equivalentes ao piso do Salário Mínimo; no BPC, foram concedidos mais de 5 milhões de benefícios equivalentes ao piso; e mais de 20 milhões de “privilegiados” que recebem Abono Salarial também “pagarão o pato”.

Crescimento e maior equidade na contribuição das classes de maior renda

O crescimento econômico é requisito para o equilíbrio financeiro da Previdência pelos seus impactos positivos nas receitas que incidem sobre a folha de salário, o faturamento e o lucro das empresas.

O ajuste fiscal também pode ser alcançado pela maior equidade na contribuição das classes de maior renda. É preciso enfrentar as inconsistências do regime macroeconômico que não impõe limite para os gastos financeiros, transferindo, dos pobres para os ricos, mais de R$ 400 bilhões de juros por ano (quase quatro anos da ‘‘economia’ que governo espera da “Nova Previdência”).

A saída para o Brasil não “quebrar” também pode ser alcançada mediante a reforma tributária. Amplo estudo[5] mostra que é tecnicamente possível quase duplicar o atual patamar de receitas da tributação da renda, patrimônio e transações financeiras, de R$ 472 bilhões para R$ 830 bilhões, um incremento de R$ 357 bilhões (mais de três anos de ‘economia, nos termos da proposta encaminhada pelo governo Bolsonaro’)

O estudo também aponta para a necessidade de se rever as isenções fiscais, pelas quais o Governo Federal todo ano deixa de arrecadar cerca de 20% de suas receitas: em 2017, o montante de isenções totalizou R$ 406 bilhões (mais de quatro anos de ‘economia’). Também é necessário combater a sonegação de impostos, estimada em cerca de R$ 500 bilhões anuais (mais de cinco anos de ‘economia’). Em conjunto, esses recursos (isenções fiscais e sonegação) totalizam, aproximadamente, 12,8% do Produto Interno Bruto (PIB), montante superior ao dispêndio da Seguridade Social (11,3% do PIB) que a “Nova Previdência” planeja destruir.

Portanto, há várias vias alternativas, para o país não “quebrar”. Todas elas exigem que se desmonte, no Brasil, o maior programa mundial de transferência de renda dos mais pobres, para os ricos.

[1] CEPAL (2015). Panorama Fiscal de América Latina y el Caribe 2015- Dilemas y espacios de políticas. Santiago de Chile: Comissión econômica para la América Latina y el Caribe (Cepal).

[2] OIT (2019). La reversión de la privatización de las pensiones: Reconstruyendo los sistemas públicos de pensiones en los países de Europa Oriental y América Latina (2000-2018). Isabel Ortiz; Fabio Durán-Valverde, Stefan Urban, Veronika Wodsak; Zhiming Yu. Documento de trabajo núm. 63.

[3] Andras Uthoff (Entrevista). 0s 10 mitos do sistema previdenciário de Paulo Guedes, segundo Andras Uthoff http://www.justificando.com/2018/12/18/10-mitos-do-sistema-previdenciario-de-paulo-guedes-segundo-andras-uthoff/

[4] Com a apresentação do projeto para a aposentadoria dos militares, a economia pretendida caiu para pouco mais de R$ 1 trilhão.

[5] A Reforma Tributária Necessária – Justiça fiscal é possível: subsídios para o debate democrático sobre o novo desenho da tributação brasileira (documento completo) / Eduardo Fagnani (Organizador). Brasília: ANFIP: FENAFISCO: São Paulo: Plataforma Política Social. 2018. http://plataformapoliticasocial.com.br/justica-fiscal-e-possivel-subsidios-para-o-debate-democratico-sobre-o-novo-desenho-da-tributacao-brasileira/

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