“Conciliação de classes não funciona. Está aí algo a aprender com Lênin e a Revolução Russa: não se pode confiar nos seus inimigos”, diz o historiador, que é doutor em História e professor da USP. Ele avalia aqui aspectos que foram decisivos para a vitória bolchevique e  poderiam inspirar as esquerdas no Brasil de hoje, adiantando parte da exposição que fará na mesa 100 anos da Revolução Russa*.

Por Celia Demarchi

O que as esquerdas brasileiras teriam a aprender atualmente com os revolucionários russos?

LBP: A Revolução Russa demonstra a possibilidade de uma transformação radical na sociedade. O que podemos aprender com os bolcheviques? Eles tinham organicidade, disciplina, projeto político, programa, teoria.  Realizavam debates internos bastante acalorados sobre economia, desenvolvimento industrial, sindicatos, questão agrária, instituições militares, relações exteriores. São temas fundamentais para se levar adiante um projeto de mudança social. Os bolcheviques nos mostram a importância da persistência, da paciência, da avaliação correta da conjuntura, fatores que os levaram a atuar da melhor forma naquela situação específica. Ainda que nem sempre houvesse consenso entre os dirigentes, eles possuíam um conhecimento profundo do processo histórico russo e do contexto internacional, além de uma disciplina férrea e respeito ao centralismo democrático.

Há conhecimento profundo do processo histórico brasileiro entre as esquerdas?

LBP: Tivemos intelectuais que conseguiram ir às raízes de nosso processo histórico, homens que estudaram o Brasil dos tempos coloniais à contemporaneidade.  Podemos citar alguns, como Florestan Fernandes, Caio Prado Júnior, Ruy Mauro Marini, Nelson Werneck Sodré, entre outros. Hoje temos, por certo, estudiosos sérios (muitos dos quais, ligados à Academia), que abordam períodos mais recentes, especialmente a partir do processo de redemocratização.  As análises do lulismo (ou lulopetismo) e do golpe institucional do ano passado têm sido frequentes.  Mas as abordagens são essencialmente conjunturais.  De qualquer forma, sentimos falta de pensadores que estimulem a discussão sobre a possibilidade de construção de um projeto socialista. Muitos militantes atuais se dizem anticapitalistas.  Mas não se posicionam explicitamente a favor do socialismo. Parece que há um medo ou desconforto de usar a palavra “socialismo”, talvez por ter ficado muito associada ao socialismo burocrático soviético, ao socialismo real. Mas é uma palavra forte e deve ser utilizada. Também é importante retomar o marxismo.  Alguns partidos de esquerda e movimentos sociais promovem cursos de formação de quadros e incentivam a leitura dos clássicos; há também editoras que publicam livros marxistas; e professores e estudantes universitários que discutem, no meio acadêmico, as ideias de Marx, Engels, Lênin, Lukács, Mariátegui, Guevara, entre tantos outros.  Mas é preciso mais gente lendo, debatendo, divulgando…

Como você avalia o cenário?

LBP: O primeiro ponto é resistir e isso está acontecendo há um bom tempo.  Temos organizações vivas, estruturadas, com tradição de luta, experiência, organicidade, militantes preparados, espírito combativo, revistas e jornais progressistas.  Mas ainda falta penetrar amplamente nos setores populares, tornar a pauta das esquerdas acessível a todos.  É preciso, portanto, lutar pela hegemonia. A grande mídia não repercute devidamente a resistência dos trabalhadores, enquanto o nível político e educacional de boa parte da população é baixo…

Mas não era assim também na Rússia do começo do século 20?

LBP: O proletariado era pequeno em relação ao campesinato e os bolcheviques, uma força numericamente menor que alguns outros grupos políticos. Ainda assim conseguiram lutar contra uma gama de oponentes ao longo dos anos: os russos brancos, mencheviques, anarquistas, socialistas revolucionários, tropas estrangeiras invadindo o país. Hoje, o mundo é bastante diferente.  É verdade que podemos utilizar novas ferramentas eletrônicas, criar conteúdos próprios, tentar divulgar uma narrativa distinta, alternativa, a partir do ponto de vista do proletariado. Por mais democráticos que sejam os espaços da internet, contudo, a massa ainda é influenciada pelas telenovelas e pelo Jornal Nacional. Ou segue os ditames de seus líderes religiosos conservadores.  Além disso, quem está na web é altamente monitorado: somos rastreados o tempo todo.  Temos de nos perguntar também quem manda na internet.  As grandes corporações por trás da rede não têm qualquer interesse em grandes mudanças sociais.  Estão preocupadas com o lucro.  Sem contar que muitas vezes colaboram com as agências ou serviços de informação do Estado.

Mas a virada à direita acontece no mundo todo, praticamente…

LBP: Sim, mas o nosso processo tem suas particularidades.  Nossa história está pontuada por crises e rupturas institucionais.  Só da década de 1930 para cá tivemos a revolução de 1930, a revolução constitucionalista, o Levante Comunista, o Estado Novo e seu fim em 1945, o suicídio de Vargas, crises constantes no governo JK, Jânio (que renunciou) e João Goulart, o golpe de 1964.  Depois da ditadura militar, um presidente eleito indiretamente que falece e, portanto, não assume; alguns anos mais tarde, o impeachment de Collor.  O período mais estável que tivemos recentemente foi do governo de Fernando Henrique Cardoso até o primeiro mandato de Dilma Rousseff. A partir do segundo mandato dela volta o padrão recorrente da história brasileira. O país passou constantemente por disputas intraclassistas ao longo da história, disputas que quase sempre acabam em conciliação pelo alto.  A massa popular, por sua vez, fica de fora dos acordos.  Em geral, ela “leva na cabeça”, como está acontecendo agora, com as reformas que pretendem acabar com o pouco de respaldo que o trabalhador ainda tem.

Quem está ganhando mais com isso?

LBP: O agronegócio, os bancos, a grande mídia corporativa, o setor financeiro. A população, por outro lado, está sendo esmagada: massacres de indígenas, revisões de demarcações de suas terras, assassinatos de trabalhadores rurais, retrocesso na reforma agrária, repressão aos movimentos sociais, prisão de militantes, a proibição de greves de determinadas categorias, terceirização, reforma trabalhista, reforma da previdência e por aí vai…

Há um limite para esse retrocesso?

LBP: Em algum momento a corda vai arrebentar. Há reação isolada de todos os diferentes segmentos atacados.  Mas a grande mídia não divulga essas notícias adequadamente.  Não há interesse. A principal pauta na atualidade é a Lava Jato, com o objetivo explícito de destruir Lula e o PT.

Como chegamos aqui, o que pode acontecer agora?

LBP: Pergunto se será possível construirmos uma frente democrática e popular de esquerda, com movimentos sociais, partidos e organizações com pautas progressistas, uma frente que vá além do “Fora Temer” ou “Diretas Já”, por exemplo. O fato é que não se pode viver de calendário eleitoral. Qualquer um que for eleito pelas normas atuais, seja quem for, vai fazer coalizões, negociações, acordos. Gostando ou não do Hugo Chávez, temos de concordar que ele soube aproveitar o momento, utilizando-se de todos os recursos democráticos reconhecidos internacionalmente, para mudar a constituição, construir um judiciário e um Supremo do lado dele, reconstituir e transformar profundamente as forças armadas. Aqui não se fez nada disso. Sem tirar os méritos de muitas políticas sociais do PT, os governos petistas beneficiaram a população mais pobre, mas também, ao mesmo tempo, os bancos, o agronegócio, o sistema financeiro: tentaram agradar a todos. Ou, pelo menos, as duas pontas: os mais pobres e os mais ricos.  Conciliação de classes não funciona. Está aí algo a aprender com Lênin e a Revolução Russa: não se pode confiar nos seus inimigos.

*Participam da mesa ainda Osvaldo Coggiola e Martin Hernandez.

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