Entrevista: Ladislau Dowbor
O economista e professor da PUC-SP participa da mesa Austeridade, retrocessos e perspectivas: quem paga o pa(c)to?. Um dos críticos mais contundentes do rentismo no Brasil, autor de mais de 40 livros, ele antecipa aqui o assunto. Mostra como o governo Fernando Henrique Cardoso criou mecanismos que transformaram o sistema financeiro nacional em meio de drenagem de dinheiro da sociedade e do governo, que supostamente financiaria, para os bancos. E lembra que tal sistema esteve no centro tanto da Carta aos Brasileiros, de Lula, quanto do golpe que derrubou Dilma Rousseff em 2016
Por Celia Demarchi
P – Qual foi o fator principal no processo que nos trouxe do que o você chama de “década de ouro” da economia (2003 a 2013) para a recessão?
Ladislau Dowbor – O essencial no processo foi o sistema de financeirização que aumentou brutalmente a exploração, tanto das famílias, quanto das empresas pequenas e médias e do próprio estado por grupos financeiros. A exploração se deu por meio das taxas de juros, que nunca foram tão altas no Brasil quanto a partir do governo Lula. Juro de 490% ao ano, em 2017, e 330% ao ano atualmente no rotativo cartão de crédito é algo completamente maluco.
P – Por que os juros subiram tanto?
LD – Basicamente, a moeda se tornou virtual com os cartões e a complexidade dos mecanismos financeiros. O consumo das famílias, é de longe o mais importante para a economia brasileira, equivale a 60% do PIB, enquanto as exportações representam apenas 11%. O dinheiro se transformou num sinal magnético, mais facilmente manipulável do que no sistema financeiro centralizado. Todo o esforço do governo Lula para melhorar a capacidade de consumo das famílias, com 149 programas sociais, foi rapidamente aproveitado pelos bancos, que logo aprenderam a captar esse dinheiro, principalmente por meio dos crediários, que em fevereiro último cobravam 129% ao ano. Ou seja o consumidor paga mais do que o dobro do valor da compra e consegue adquirir menos de metade do que poderia. Na Europa os juros sobre compras a prazo é de 8% a 10% ao ano.
P – E quais foram as consequências desse processo?
LD – O poder de compra das famílias foi estrangulado pelos juros surreais e a economia travou. Os juros do rotativo do cartão de crédito, cheque especial, crediário e empréstimo consignado, que está em 28% ao ano (na Europa seria 2,5%). E o número imenso de endividados continua aumentando. Atualmente 62,3 milhões de brasileiros têm o nome negativado. Em 2017 já eram 61 milhões, ou 39% dos adultos do país, segundo o SPC. E a dívida das famílias, que em 2005 comprometia 18,4% da renda mensal e em 2103 43,8%, hoje equivale a 46%. Um aumento brutal que puxou também as taxas de juros.
P – Como chegamos a isso?
LD – Esse processo foi se desenvolvendo durante o governo Lula e se agravando durante a primeira gestão Dilma Rousseff. E ela decide baixar os juros. A intenção era recuperar o poder de compra das famílias, tanto o privado quanto o coletivo, o consumo de serviços públicos, porque reduziria o volume de transferência de dinheiro arrecadado com impostos para os bancos, beneficiando a capacidade de investimento do estado. Ela estava correta, mas não tinha cacife político para enfrentar os bancos, inclusive internacionais, nem a classe média alta rentista, que foi protestar na Avenida Paulista (77% dos manifestantes eram pessoas com curso superior). Deu errado.
P – Mas os juros eram muito altos já nos anos 1980. O que mudou?
LD – Naquele período havia a hiperinflação, outro processo de transferência de renda dos pobres para os bancos e para os ricos. Alguém perde e alguém capta a perda. Hoje é muito pior por causa da concentração bancária. 85% do sistema é operado por cinco bancos. Na Caixa Econômica Federal e no Banco do Brasil o atual governo colocou seus próprios representantes. Banco Central e Ministério da Fazenda estão em poder do sistema financeiro. O J&F, braço financeiro do grupo JBF, era comandado por Henrique Meirelles.
P – Superamos a inflação e continuamos sendo explorados. Como se deu esse processo?
LD – Quatro mecanismos, todos criados durante a gestão de Fernando Henrique Cardoso, produziram o cenário que seria herdado por Lula. Em 1995 Fernando Henrique criou a taxa Selic, a taxa básica, elevada. Em primeiro de julho de 1996 a Selic foi fixada em 25% ao ano. Ainda no governo Fernando Henrique chegou a 46%. Nos Estados Unidos a taxa básica é de 1.75%. Fez-se um sistema de drenagem de dinheiro dos impostos, dinheiro público, para os bancos, e não um sistema de financiamento do governo. Em 26 de dezembro de 1995 aprovaram a lei que isenta acionistas de empresas de pagar imposto sobre lucros e dividendos. Em 1997 o Congresso aprovou o financiamento corporativo de campanhas e com isso o parlamento passou a ser dominado por grandes grupos econômicos. Isso durou 18 anos, até 2015, quando o STF finalmente enxergou que a fórmula viola o artigo número um da Constituição Federal, que diz: “todo poder emana do povo”. Ainda foi preciso mais dois anos depois disso para mudar as regras porque o ministro Gilmar Mendes levou a proposta de alteração para casa. Em 1999, José Serra apresenta uma PEC que liquida o artigo 192 da Constituição, segundo o qual o “sistema financeiro nacional [será] estruturado de forma a promover o desenvolvimento do país e a servir aos interesses da coletividade”. A PEC eliminou o teto de 12% reais ao ano para os juros, tornando possível um sistema legal de agiotagem. E hoje o que temos é o teto de investimentos públicos.
P – Lula assumiu engessado.
LD – Lula herdou um sistema, com a estrutura de poder concentrada nas mãos do sistema financeiro, que teria muita dificuldade para mudar. Então fez um acordo, com a Carta ao Povo Brasileiro, que propunha, ao mesmo tempo manter o sistema e garantir recursos para tirar 50 milhões de pessoas da miséria, o que ele fez. A partir de 2013 esse sistema, descontente com Dilma, conseguiu desestabilizar seu governo. Quebraram o Brasil, atribuíram a crise à presidente e agora dizem que estão consertando.
P – Como você avalia situação da economia hoje?
LD – Nenhuma, absolutamente nenhuma das medidas que esse governo adotou faz algum sentido. Com forte rejeição interna, eles equilibram-se nos interesses internacionais, entregando o petróleo do pré-sal, de importância gigantesca, nossas terras. O Brasil, além das savanas africanas é o país com a maior reserva do mundo de terras férteis e com disponibilidade de água. Enquanto mantêm taxas de juros absolutamente surreais. Geraram a crise extorquindo as famílias, as pequenas e médias empresas e o estado, por meio da dívida pública. Sob forma de juros pagos pelas famílias e pelas empresas, os bancos extraem o equivalente a 16% do PIB. Com a dívida pública levam outros 6% a 8% do PIB. O seja, o rentismo fica com até 24% do PIB. Nenhuma economia pode funcionar assim.