O historiador Flamarion Maués é um estudioso do mercado editorial, com ênfase nas editoras de esquerda. Autor da obra Livros contra ditadura: Editoras de oposição no Brasil, 1974 – 1984 (Publisher) ele enviou este artigo para o site. Aproveite.

Flamarion Maués *

 

Resumo

Esta comunicação apresenta um levantamento das editoras políticas de esquerda atuantes no Brasil neste século, no eixo São Paulo–Rio de Janeiro. Trata-se de um panorama amplo das editoras de livros vinculadas às ideias de esquerda que mais têm se destacado na difusão de obras políticas no país nesse período, buscando apresentar uma visão geral do campo editorial no Brasil no que diz respeito a este tipo de editora. A partir do conceito de edição política, ou seja, a edição diretamente vinculada ao engajamento político, acredito que tais editoras desempenham um papel importante na disseminação e no debate de ideias, apresentando perspectivas diferenciadas em relação à mídia empresarial.

Palavras-chave: Edição política; Editoras políticas no Brasil; Livros políticos.
1. Livro e política

“Em nosso imaginário coletivo, o livro é um dos suportes naturais das culturas políticas”, afirma a historiadora francesa Marie-Cécile Bouju (2010, p. 11). Isso se deve ao fato de que a edição de livros sempre foi uma das mais importantes formas de divulgação e de debate de ideias, seja na época anterior à invenção de Gutenberg – quando os livros eram ainda manuscritos –, seja depois do surgimento da impressão com tipos móveis.

Logo, a imprensa e os livros sempre foram um veículo fundamental para a disseminação das ideias políticas, contribuindo decisivamente para a circulação das diversas opiniões e, por meio do debate e das trocas que essa circulação proporciona, permitiram o aprofundamento das ideologias e das propostas políticas delas decorrentes.

Trataremos aqui de um pequeno pedaço dessa grande teia de ideias, a saber, das editoras políticas de esquerda no Brasil neste século, no eixo São Paulo–Rio de Janeiro. Tentarei apresentar um panorama amplo das editoras vinculadas a ideias de esquerda que mais se destacaram na difusão de obras políticas no país nesse período. Certamente haverá lacunas, mas creio que será possível termos uma visão geral do campo editorial no Brasil no que diz respeito às editoras com vinculações políticas de esquerda.

Destaquemos, todavia, que esse panorama estará longe de esgotar o tema, uma vez que a edição de obras políticas não se restringe às editoras ligadas a grupos políticos, mas também é feita por editoras de caráter comercial, ou seja, editoras que publicam títulos variados, inclusive algumas obras políticas – como é o caso, atualmente, de editoras como Geração, Vozes, Cortez, Jorge Zahar e Unesp.

Além disso, há também as editoras que publicam obras ligadas ao pensamento de direita, que não serão abordadas neste trabalho.

  1. Edição política

Para definir as editoras políticas, parto do conceito de edição política, ou seja, do trabalho editorial que vincula de modo direto engajamento político e ação editorial3. São editoras que atuam ou atuaram com clara intenção política de intervenção social, com um projeto editorial e/ou empresarial de fundo político, cujo objetivo é promover a divulgação e o debate de determinadas ideias políticas publicamente na sociedade, posicionando-se em defesa dessas ideias. Assim, a editora política caracteriza-se pelo engajamento político, que estrutura o seu catálogo.

A casa editorial que realiza a edição política mantém, em certos casos, vínculos orgânicos com instituições políticas, como por exemplo partidos e associações civis. Mas pode também ser iniciativa de um indivíduo, ou grupo de indivíduos, que a título pessoal (ou do grupo) empenha-se no ramo editorial e busca que esta atividade reflita, em alguma medida, a sua forma de ver e interpretar o mundo. Em ambos os casos o engajamento se dá pela defesa de certos princípios, ideias e causas, e se materializa nos livros editados, como resultado da íntima ligação entre edição e engajamento4.

  1. Um pouco de história

Antes de entrarmos no nosso tema principal, vale a pena uma menção, ainda que muito rápida, a algumas editoras políticas que existiram no Brasil desde os anos 1930. Naquela década, editoras como Unitas (do militante da Oposição de Esquerda – trotskista – Salvador Cosi Pintaúde), Editorial Calvino (do militante pecebista Calvino Filho), Marenglen (junção dos nomes de Marx, Engels e Lenin), Alba, Soviet, Pax, Lux, Minha Livraria, Cultura Brasileira, Nosso Livro, Caramuru, Selma e Trabalho foram das primeiras a editar obras marxistas no país (KAREPOVS, 2013; CARONE, 1986).

Com a entrada do Brasil na guerra ao lado dos Aliados, em 1942, a situação política interna sofre mudanças, o que abre espaço para a reorganização dos comunistas brasileiros, inclusive no campo editorial. Essa nova conjuntura permite que algumas editoras voltem a publicar livros simpáticos à URSS (União das Repúblicas Socialistas Soviéticas) e também obras ligadas ao pensamento socialista e marxista.

Nesse quadro, e já com perspectivas de legalização, o PCB apoia, entre 1944 e 1945, a criação de três editoras para realizar a publicação de livros de seu interesse – as editoras Leitura, Horizonte e Vitória. Pouco depois, em 1948, a Horizonte foi incorporada à Vitória, e a Leitura manteve um nível de publicações pequeno, tornando-se a Vitória, marcadamente a partir de 1947, a principal editora comunista do país (MAUÉS, 2013).

Além dessas, editoras como a Mirante e a Asunção, ambas de São Paulo, publicavam obras ligadas ao pensamento socialista e marxista (TABAK; KONDER, 1949).

Nos anos 1950 e 1960 ganham destaque as editoras Brasiliense (São Paulo) e Civilização Brasileira (Rio de Janeiro), ambas de propriedade de militantes do PCB: a primeira de Caio Prado Jr. e a segunda de Ênio Silveira. Outras que se destacam são Fundo de Cultura, José Álvaro Editor, Saga, Fulgor e Zahar, do Rio de Janeiro, e Escriba e Senzala, de São Paulo.

Nos anos 1970 e 1980 destacam-se as editoras de oposição, que direcionam a sua atuação para a oposição à ditadura, principalmente a partir de 1977. Entre elas estão a Alfa-Ômega, Global, Duas Cidades, Hucitec, Cortez, Paz e Terra, Codecri, Ciências Humanas, Graal, Edições Populares, Brasil Debates, Kairós, Marco Zero, além das já citadas Brasiliense e Civilização Brasileira Maués, 2013a).

Nos anos 1990 se destacou a editora paulista Scritta, de Max e Breno Altman.

  1. Século XXI

Nos últimos 15 anos, algumas editoras políticas de esquerda vêm se destacando no panorama brasileiro. Talvez a mais importante entre elas seja a Boitempo Editorial, de São Paulo, fundada em 1995 e dirigida por Ivana Jinkings. Ligada a intelectuais de esquerda, publica com apurado cuidado editorial autores como Boaventura de Sousa Santos, David Harvey, Edward Said, Emir Sader, Francisco de Oliveira, François Chesnais, Giorgio Agamben, György Lukács, Immanuel Wallerstein, István Mészáros, Maria Rita Kehl, Michael Löwy, Mike Davis, Paulo Arantes, Perry Anderson, Ricardo Antunes, Tariq Ali e Slavoj Žižek. Possui um amplo catálogo com temas ligados aos debates ideológicos e políticos mais atuais. Vêm editando a obra de Marx e Engels em novas traduções feitas diretamente do alemão e edições comentadas. Hoje seu catálogo chega a cerca de 300 títulos. Além disso, edita a revista semestral Margem Esquerda, de estudos marxistas (http://www.boitempoeditorial.com.br/).

A Boitempo tem ainda promovido cursos sobre a obra de Marx e Engels, além de patrocinar a vinda ao Brasil de alguns de seus autores estrangeiros mais destacados para palestras e eventos.

Outra editora que se destaca é a Expressão Popular, de São Paulo, criada por iniciativa do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), inicialmente visando produzir material para a formação política de militantes e simpatizantes, mas que sempre se caracterizou por ter um alcance mais amplo. Fundada em 1999, é coordenada por Carlos Belé e dirigida por um conselho editorial  (http://expressaopopular.com.br/).

Tem reeditado obras que estavam esgotadas, como Combate nas trevas, de Jacob Gorender (em coedição com a Fundação Perseu Abramo), A crise do movimento comunista, de Fernando Claudín, História militar do Brasil, de Nelson Werneck Sodré, O estruturalismo e a miséria da razão, de Carlos Nelson Coutinho, e Sete ensaios de interpretação da realidade peruana, de José Carlos Mariátegui. Entre seus autores estão Enrique Dussel, Florestan Fernandes, Leandro Konder, Celso Frederico, Ademar Bogo, Atílio Boron, João Pedro Stédile, Marx, Engels, Lenin, Mao Tsé-Tung, Rosa Luxemburgo e Plekhanov.

A Expressão Popular se caracteriza também por cobrar preços abaixo do mercado por seus livros. Isso é possível pelo fato de a editora não visar o lucro e contar com o trabalho voluntário militante. Tem hoje mais de 300 títulos publicados.

Entre os partidos de esquerda, três possuem editoras ativas: Partido dos Trabalhadores (PT), Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado) PSTU. As três se caracterizam por publicar não só obras voltadas para os seus militantes, mas também para o público em geral.

O PT mantém a Editora Fundação Perseu Abramo, criada em 1997 e coordenada por Rogério Chaves. Entre os autores publicados estão Antonio Candido, Marilena Chaui, Celso Furtado, Lélia Abramo, Maria da Conceição Tavares, Milton Santos, Walnice Nogueira Galvão, Aloysio Biondi, Paul Singer, Sérgio Buarque de Holanda, Venício de Lima. Recentemente promoveu a reedição de obras como Pau de arara: a violência militar no Brasil, de Bernardo Kucinski e Ítalo Tronca, O escravismo colonial, de Jacob Gorender, e Poemas do povo da noite, de Pedro Tierra. A Editora Fundação Perseu Abramo disponibilizou mais de 40 obras de seu catálogo para download gratuito (http://novo.fpabramo.org.br/). Tem cerca de 200 obras em seu catálogo.

A editora Página 13, ligada à corrente interna do PT denominada Articulação de Esquerda, começou recentemente a editar livros. O editor é Valter Pomar, e alguns de seus títulos podem ser baixados gratuitamente em: http://www.pagina13.org.br/biblioteca/editora-pg13/.

O PCdoB tem desde 1979 a Editora Anita Garibaldi, atualmente coordenada por Zandra Baptista. Publicou obras de Astrojildo Pereira, Clovis Moura, Domenico Losurdo, João Amazonas, Altamiro Borges, Haroldo Lima, Octavio Brandão, José Carlos Ruy, Dario Canale e Che Guevara, além de obras de Marx e Engels, entre outros autores. Recentemente editou O livro negro da ditadura militar, obra lançada originalmente de modo clandestino em 1972 pela Ação Popular denunciando as violências e as torturas praticadas no Brasil naqueles anos. Desde 1981 edita a revista bimestral Princípios (http://www.anitagaribaldi.com.br/).

A Editora Sundermann foi fundada em 2003 pelo PSTU. Seu nome é uma homenagem ao casal de militantes José Luís e Rosa Sundermann, assassinado em 1994. Enfatiza a republicação de obras de autores marxistas como Engels, Lenin, Trotsky e do dirigente trotskista argentino Nahuel Moreno. Outros autores da editora são Pierre Broué, Ernest Mandel, José Maria de Almeida, Edmundo Fernandes Dias, Valério Arcary, Carlos Bauer, George Novack, Alicia Sagra e José Welmowicki. Publica a revista Marxismo Vivo, da Liga Internacional do Trabalhadores Quarta Internacional (LIT-QI) (http://www.editorasundermann.com.br/).

O Instituto Caio Prado Jr., próximo ao PCB, mantém também uma editora, dirigida por Milton Pinheiro, que tem publicado livros e a revista Novos Temas (http://institutocaioprado.org.br/icp/).

  1. Outras editoras

Há ainda algumas outras editoras que se destacam pelas publicações de caráter político. A Revan, do Rio de Janeiro, já tem mais de 30 anos de atividade, período em que publicou mais de mil títulos sob a direção de Renato Guimarães. Entre seus autores destaca-se Oscar Niemeyer. Também do Rio, a editora Achiamé foi criada em 1978 por Robson Achiamé e se dedica primordialmente à edição de obras relacionadas ao pensamento anarquista.

A paulista Xamã, de Expedito Correia, completou 20 anos, período em que publicou mais de 200 títulos, a grande maioria vinculada ao pensamento de esquerda. A carioca Contraponto, de César Benjamin, com quase duas décadas de vida, publica, além de obras políticas, obras de caráter acadêmico e científico. A Plena Editorial, de São Paulo, dirigida por Ary Normanha e Ivan Seixas, vem se destacando por obras sobre a memória e a história dos últimos 50 anos do Brasil, em particular da resistência à ditadura. A paulista Publisher, de Renato Rovai, editou durante mais de dez anos a revista Fórum (atualmente em edição eletrônica: http://www.revistaforum.com.br/) e publica livros ligados ao pensamento progressista.

Há ainda algumas pequenas editoras, com atuação nem sempre constante, que se caracterizam pela publicação de obras políticas de esquerda: Centauro, Centelha Cultural, Dobra Editorial, Edições Iskra, Olho D’Água, Radical Livros, Selo Negro e Tinta Negra.

Certamente há algumas lacunas neste levantamento, mas acredito que temos aqui um breve registro das mais importantes editoras políticas de esquerda em atuação no Brasil atualmente no eixo São Paulo–Rio de Janeiro.

Todas essas editoras, que se caracterizam pela edição política, ou seja, a edição diretamente vinculada ao engajamento político, desempenham um papel importante na disseminação e no debate de ideias que podem ajudar a entender melhor o Brasil e o mundo de hoje, apresentando perspectivas diferenciadas em relação à mídia empresarial e tocando em temas muitas vezes desprezados ou escondidos por ela. Contribuem, dessa forma, para ampliar o debate e trazer novos olhares e possibilidades para a luta política e ideológica.

 

* Trabalho apresentado no DT 6 – GP Produção Editorial, do XIV Encontro dos Grupos de Pesquisa em Comunicação, evento componente do XXXVII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Foz do Iguaçu, PR – 2 a 5/9/2014.

 

Flamarion Maués é doutor em história pela USP, autor de Livros contra a ditadura: Editoras de oposição no Brasil, 1974-1984 (Publisher, 2013).

 

Referências bibliográficas

BOUJU, Marie-Cécile. Lire en comuniste: Les maisons d’édition du Parti communiste français, 1920-1968. Rennes: Press Universitaires de Rennes, 2010.

CARONE, Edgard. O marxismo no Brasil (das origens a 1964). Rio de Janeiro, Dois Pontos, 1986.

HAGE, Julien. “Feltrinelli, Maspero, Wagenbach: une nouvelle génération d’éditeurs politiques d’extrême gauche en Europe Occidentale 1955-1982. Thèse de Histoire Contemporaine, Université de Versailles Saint-Quentin-En-Yvelines Batiment D’Alembert, 2010.

KAREPOVS, Dainis. “A Gráfico-Editora Unitas e seu projeto editorial de difusão do marxismo no Brasil nos anos 1930”. In: DEAECTO, Marisa M.; MOLLIER, J-Y. Edição e revolução: leituras comunistas no Brasil e na França. São Paulo/Belo Horizonte, Ateliê/Ed. UFMG, 2013, p. 65-119.

MAUÉS, Flamarion. “A Editorial Vitória e a divulgação das ideias comunistas no Brasil”. In: DEAECTO, Marisa Midori; MOLLIER, Jean-Yves (orgs.). Edição e revolução: Leituras comunistas no Brasil e na França. Belo Horizonte/São Paulo, UFMG/Ateliê, 2013, p. 121-152 MAUÉS, Flamarion. Livros contra a ditadura: Editoras de oposição no Brasil, 1974-1984. São Paulo: Publisher, 2013a.

MOLLIER, Jean-Yves. “Quando o impresso se torna uma arma no combate político: a França do século XV ao século XX”. In: DUTRA, Eliana Freitas; MOLLIER, J. Y. (orgs.). Política, nação e edição. O lugar dos impressos na construção da vida política. Brasil, Europa e Américas nos séculos XVIII-XX. São Paulo: Annablume, v. 1, 2006, p. 259-274.

SILVA, Flamarion Maués Pelúcio. Livros que tomam partido: a edição política em Portugal, 1968-80. Tese de doutorado em História, Universidade de São Paulo, 2013. Disponível em: <http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-07112013-131459/en.php>.

SIMONIN, Anne. Les éditions de Minuit, 1942-1955. Le devoir d’insoumission. Paris, IMEC Éditions, 1994.

TABAK, Salomão; KONDER, Victor. “A Divulgação das Obras de Stálin no Brasil”. Problemas – Revista Mensal de Cultura Política, nº 23, dez 1949, p. 43-54. Disponível em: <http://www.marxists.org/portugues/tematica/rev_prob/23/obras.htm>.

VALLOTON, François. “Edition et militantisme: le catalogue de ‘La Cité: Editeur’ (1958-1967)”. In: BURNAND, Léonard; CARRON, Damien; JEANNERET, Pierre (orgs.). Livre et militantisme. La Cité Editeur, 1958-1967. Lausanne: Editions d’en bas, 2007, p. 7-26.

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